ANATOMIA DA EXPRESSÃO E IMAGEM NARRATIVA.
É com
muito prazer que apresento, pela primeira vez, um gênero de estudo da forma que
venho desenvolvendo há muitos anos. Voltando no tempo, quando eu tinha 14 anos,
meu amado e sempre lembrado irmão Denoy de Oliveira, à época aluno da Faculdade
de Arquitetura da UFRJ, ou Universidade do Brasil como era chamada, me trouxe
para estudar um livro de anatomia artística, certamente da biblioteca da
escola.
Lembro-me
perfeitamente do livro, capa dura e grossa lombada, e das descobertas que o
estudo da anatomia me trouxe, por exemplo, no desenho da cabeça. A correta
colocação dos olhos, da orelha, do nariz e, principalmente, a experiência do
cânone. Foi na época uma vivência, e uma transformação profunda em meus
primeiros desenhos de adolescente.
Saber que
existe — e isso muito me encantou — uma coerência lógica na construção do
corpo: uma estrutura concreta que possibilitava expressar momentos de
abstração. Ter consciência, por exemplo, que o sorriso infindo, não sabemos
quando começa tampouco quando termina, que Leonardo da Vinci utilizava, era
obtido por um profundo conhecimento da ossatura e dos músculos submersos na
face. Os movimentos da coluna vertebral com a cabeça, as proporções, tudo
assemelha-se às ligaduras usadas pelos músicos, que são verdadeiros elos unindo
seguidamente as partes do corpo.
Resumindo,
o estudo da anatomia da cabeça — estou apenas me referindo à cabeça nesta
postagem — me possibilitava não apenas desenhar corretamente a estrutura dos
olhos, mas representar e expressar a abstração do olhar. Este sim, um nível
muito superior.
Isto,
confesso, tornou-se uma obsessão pra mim, presente em todos os meus trabalhos
até os nossos dias, inclusive nos diversos meios plásticos que utilizei em
minha carreira, tais como o cinema, a tv, animação, cartazes, capas de livros,
ilustração etc.
Diante
destas experiências, acredito que o espiritual é obtido por meio e através do
domínio e estudo da matéria. O que estou querendo dizer é que a forma e a
estrutura não caminham dissociadas dos significados e simbolismos de nossas
imagens. Muito pelo contrário. É sempre bom dizer para os jovens
principalmente que o conhecimento do corpo por meio da anatomia deve sempre
passar pela personalidade de cada um.
Ela é, acima de tudo, um estudo pessoal,
um modo próprio de ler as regras e proporções do corpo. Michelangelo tem uma
visão do corpo completamente diferente de Rafael, e ambos estão corretíssimos.
Dois grandes mestres do ensino da anatomia para artistas, o alemão Gottfried
Bammes e o húngaro Jeno Barcsay, têm leituras diversas do corpo.
A
abstração das pinceladas de Paul Cézanne parece independer do Monte Vitória,
mas, na verdade, elas só vieram à luz a partir de sua presença. Portanto, é um
conceito provido de uma origem. A representação unicamente do conceito, sem
referencial algum que não seja ele próprio, levou a arte de nossos dias a este
insolúvel nó górdio, mas isto está fora do escopo deste texto. O rosto na
imagem narrativa — quer seja no cinema, pintura ou ilustração — é uma legenda.
Ele é um relato, uma hagiografia laica. A face é um elo fundamental na
imagem que conta histórias.
Acho
muito difícil pensar em arte visual sem o concurso da representação. Apesar de
sabermos, pela vivência histórica da arte, que a destreza, a habilidade para
desenhar não é critério de valor estético em si. Tampouco o abandono total, ou
natural imperícia para representação. Todavia, temos que refletir sobre alguns
fatos.
Na
trajetória artística do pintor abstrato Manabu Mabe, por exemplo, a
representação, tanto em formas de figuração quanto em paisagens, é bem curta, e
tecnicamente muito simplória. A abstração em sua obra não chega a ser o
resultado de uma evolução — ela foi uma opção. Este mesmo fenômeno ocorre com a
Tomie Ohtake. Portanto, nós não podemos deificar o desenho figurativo e a formação
tradicional, ou seja, o longo registro da figura por meio de estudos a carvão,
modelo vivo, aquarelas etc.
Outro
exemplo: Jackson Pollock. Um artista exponencial no expressionismo abstrato de
pós-guerra. Em realidade, um desenhista de poucos conhecimentos. Talvez as
divergências com Edward Hopper começassem neste ponto.
Outro
ícone da pop arte nos Estados Unidos era um desenhista canhestro, considerando
a grande tradição figurativa americana. Estou me referindo a Andy Warhol, e, na
mesma trilha, o “neo-expressionista” Basquiat.
No caso
dos abstratos, há sempre na biografia destes artistas citados a seguinte frase:
“após um breve período figurativo, ele descobre a abstração”.
Apesar de
tudo isso, repito, temos que ter muita cautela a fim de evitarmos um discurso
reacionário e conservador. A arte evolui. Os artistas mudam de significados.
Seria voltar, com esta discussão, à querela entre os pintores “Pompiers”
franceses e os impressionistas. Isto no final do século XIX. Há muito tempo,
portanto.
ANATOMIA
E EXPRESSÃO.
É a
anatomia em movimento que dá expressão e simbolismo ao gesto de um personagem
numa ilustração. Surge, então, o segundo grande elemento da expressão
narrativa: as mãos. Que logo também se tornaram, até os nossos dias, numa outra
obsessão em meu trabalho.
O
movimento do pulso, dos dedos, dos ossos e dos e músculos da mão encerra todos
os simbolismos que queremos passar num personagem. Existem, em minha
opinião, dois polos, duas polaridades expressivas: os olhos, a abstração,
e as mãos, a concreção dos desejos. Em suas polaridades, eles trabalham
de forma convergente e divergente. Este tema das mãos foge ao conteúdo deste
texto. Fica para outra ocasião.
Explico o
título da postagem. Estudos de cabeça têm obviamente dois significados para
mim. O primeiro trata, obviamente, do estudo acadêmico e expressivo da
construção da cabeça. O segundo significado é que eu não trabalho com modelos.
Estes significados, na verdade, se originam de meus próprios estudos de
anatomia, e da análise de meus mestres na história da pintura e da escultura.
Acredito profundamente na espiritualidade contida no material plástico, ou
mesmo nos objetos. Nestas sessões de rostos imaginários, eu também os utilizo
para estudar técnicas diversas, combinações diferenciadas de materiais
plásticos.
Não tenho
o objetivo prático de utilizar estas técnicas em livros, por exemplo. Elas
existem para estudar as relações entre o chamado material plástico, a que acima
me referi, com abstração que as faces devem sempre expressar.
O estudo
acadêmico do corpo humano, que vejo como fundamento, não é um fim em si mesmo.
Ele é um princípio. O ícone não é um algoz do símbolo. Muito pelo contrário.
Ele é a base da abstração. .
Há um
ressurgimento da figuração em todo o mundo. O século XX terminou com 4 grandes
figurativos: Lucien Freud, Francis Bacon, David Hockney e, principalmente, a
portuguesa Paula Rego. Existem outros. Mas estes quatro representam as grandes
tendências da figura no século XXI. Não é uma revivescência, pois a figura sempre
existiu, jamais desapareceu.
Muitos
jovens — cansados da enganação das galerias, e ansiosos por obter uma
sustentação profissional em seus trabalhos, além de querer ampliar seus
meios expressivos — fazem atualmente, com muita frequência, sessões de modelo
vivo, desenhos de observação e croquis. É muito comum hoje em dia
postagens sobre anatomia artística, além do interesse pelos clássicos, e pelas
técnicas tradicionais, tais como aquarela, óleo, guache, acrílico, pastel etc.
Isto é
extremamente salutar, e ressoa em meus olhos tal qual uma grande e bela melodia
visual. A maior tecnologia que um artista possui é a sua própria mão. E a alma
mais elevada e sublime é o seu coração. Há muito, eu sei que ser um artista de
nossos dias e vislumbrar o porvir é preservar o passado.
A busca
da Revelação e do Absoluto não é só o encontro com Deus. Ela é também a busca e
o aprimoramento de nossa interioridade. Acredito que, para um artista, uma das
vias de encontro com o Absoluto é justamente o estudo do corpo humano, pois ele
é o templo de Deus.
Rui de
Oliveira – abril de 2016.
Palavras Chaves; Anatomia artística - Arte Figurativa - Portrait - Arte Narrativa
Key words: Artistic Anatomy - Figurative Art - Portrait - Narrative Art