domingo, 2 de maio de 2010

REFLETINDO SOBRE AS ÁGUAS DAS IMAGENS – Os livros que ilustrei – 1978 à 1980 (parte 1)

Quero nesta seção publicar as principais ilustrações que fiz em todos os livros que desenhei. Um árduo trabalho sem dúvida. Principalmente diante das questões da sobrevivência do dia a dia e do exíguo tempo que disponho.


Ilustro um livro após o outro há mais de 30 anos, mesmo assim, apesar destas dificuldades pessoais, tenho o maior interesse que todos conheçam o que fiz e venho fazendo no campo da ilustração editorial.

Já são mais de 120 livros. Um retrospecto que pretendo aqui neste blog trazer até os dias de hoje, ou seja, em 2010.


Estou começando pelo período que vai de 1978 até 1980. Não estou incluindo as ilustrações e desenhos que fiz na fase de estudante na Hungria, de 1969 até 1975. Pretendo fazer uma seção em breve para estes trabalhos.


No momento, meu objetivo é registrar e divulgar as imagens destes livros que ilustrei aqui no Brasil. Muitos já esgotados há tempos, e acredito que não terão mais reedições. Portanto, não deixa de ser um resgate do meu trabalho, e, sem grandes pretensões, da própria memória da ilustração de livros para crianças e jovens no Brasil.


Gostaria muito que estas ilustrações, ao menos em parte, fossem publicadas em um álbum por alguma Editora.


São pastas e pastas de desenhos, estudos, ilustrações, capas de livros, letterings, sem falar no imenso trabalho que fiz em cinema de animação e televisão.

Sempre guardei e briguei pelos meus originais junto às editoras, mas nem sempre isto foi possível. Apesar de meu esforço pessoal, muitas ilustrações se perderam.


Começo, portanto, esta série com o livro O Menino e o Trem, de Fernando Lobo, publicado pela Editora José Olympio, em 1978. Este livro recebeu a menção Altamente Recomendável pela FNLIJ, em 1979.


E Manu, a menina que sabia ouvir, do autor alemão Michael Ende, publicado inicialmente pela Editora Salamandra, em 1978. Foi um trabalho importante em minha carreira de ilustrador que se iniciava. Recebi um prêmio no Japão com estas ilustrações – Prêmio Noma-Unesco. Este fato, à época, me abriu as portas das Editoras. Era um período em que eu desenhava dia e noite em televisão, e sobrava pouco tempo para ilustrar.




















Desenhar por desenhar - Meus cadernos de desenho (parte 1)

DESENHAR POR DESENHAR.

Período de 1995 a 2010


Esta seleção faz parte de muitos cadernos de desenho que venho fazendo ao longo dos anos. Imagens jamais publicadas e que agora, utilizando os meios planetários da Internet, as revelo para o grande público. O hábito de usar estes cadernos remonta ao meu tempo de estudante, tanto no Brasil, no caso Escola de Belas Artes, como no exterior.


Estes “moleskines” me acompanharam durante os 6 anos em que estudei na Hungria, em Budapeste.


Tenho sempre em minha bolsa, ou pasta, um bloco onde anoto e desenho o que no momento me ocorre. Verdadeiros diários em forma de imagens, cartas visuais endereçadas a mim mesmo. Uma espécie de inventário visual, esfinges gráficas, com a função única de expressar a parte de um todo. Todo que não sei qual seja ou será.


Jamais tive a intenção de que estes desenhos estivessem inseridos em uma objetividade, coerência ou em qualquer projeto. Cada página é uma página, cada desenho é só um desenho. Só e coletivo, corpo e sombra ao mesmo tempo.

O que sempre quis é que eles expressassem unicamente o prazer de desenhar, algo compulsivo em minha vida. Enfim, o desenho pelo desenho.


Muitos dos livros que ilustrei, o estilo que utilizei já aparecia, muitos anos antes, nestes blocos. Fiz um retrato de meu filho Diego quando menino, muitos e muitos anos antes de ele nascer... Acredito que o desenho se origina antes do desenho. Nenhum misticismo nisso. Na verdade, desenhamos a expectativa do ver, ou seja, muito antes de criar uma imagem, esta imagem já existia.

Vemos aquilo que sonhamos e queremos ver, pouco importa o que estamos vendo.

Portanto, apesar de ter afirmado há pouco que estes “moleskines” não tinham nenhuma função além do prazer de desenhar, em contrapartida a isto, a realidade nos mostra uma outra face, uma outra constatação.


Acredito que para exercer com plenitude a criação de uma imagem objetiva, seja para um cartaz, para uma ilustração, ou mesmo no projeto de uma marca, acho importante que este artista conviva de forma diária, com a imagem subjetiva. A explicação se origina de sua ausência. Ou seja, os cadernos de desenho são o relicário da não explicação. A terra fértil para a objetividade. A astronomia surgiu da astrologia, a química da alquimia.


Tudo o que vou fazer em termos de imagem eu já fiz, ou estou rabiscando em meus “moleskines”.


Rui de Oliveira - Maio de 2010















Refletindo sobre as águas das imagens - Pelos Jardins Boboli

A leitura da imagem

Primeira parte

Infelizmente priorizamos para as crianças, de forma até perversa,

o aprendizado da leitura das palavras como atestado de alfabetização.

Seria mais conveniente se, nas escolas de ensino fundamental,

a iniciação à leitura das imagens precedesse a alfabetização

convencional. Certamente teríamos no futuro melhores leitores e

apreciadores das artes plásticas, do cinema e da TV, além de cidadãos

mais críticos e participativos diante de todo o universo icônico que

nos cerca. A própria posterior alfabetização convencional seria muito

mais agradável às crianças.

Em termos de ilustração, como podemos criar belas imagens para o pequeno

leitor, se ele no máximo aprende a decodificar palavras? A alfabetização

visual proporcionaria à criança não apenas uma leitura melhor,

mas também valorizaria a importância e a beleza das letras, dos

espaços em branco, das cores, da diagramação das páginas e da relação

entre texto e imagem. Realçar o que existe de magia e de descoberta

em cada livro é a melhor forma de incorporá-lo ao cotidiano

das crianças.

Os critérios de avaliação e de escolha de livros ilustrados são geralmente

baseados no âmbito da “preferência pessoal”, alicerçados em gostos

e aversões não justificados. Assim como existe uma sintaxe das palavras,

existe também uma relativa sintaxe das imagens. Logicamente

que para “ler” uma imagem é impossível adotar um método rígido,

um sistema, por exemplo, que avalie unicamente as questões estruturais

— ritmo, linha, cor, textura etc.

É bom esclarecer, logo no início de nossa caminhada e de nossa visitação

às imagens, que estes textos não têm nenhuma pretensão de

ser didáticos. São reflexões, até porque, como foi dito, não há uma

gramática das imagens, muito menos um manual, um receituário de

qualidade. Muitos outros fatores, além dos estruturais já citados, concorrem

para sua correta fruição.


O Vento - Livro de imagem - Rui de Oliveira - Editora DCL - 2008


Nesse sentido atua a estética, uma reflexão filosófica que de modo algum

está preocupada com definições rígidas da obra de arte. Na verdade,

todas as linhas de estudo do fenômeno artístico — sejam por

meio da sociologia da arte, da psicologia, da história da arte e até

mesmo da biografia do artista — são conhecimentos sempre parciais.

A leitura de uma obra de arte se dá por camadas, níveis, filtros

esclarecedores; são aproximações que nos revelam uma das muitas

faces da arte.



Este texto é um fragmento do livro Pelos Jardins Boboli - Reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens -

Rui de Oliveira - Editora Nova Fronteira - 2008.



Como vejo a arte de ilustrar e os objetivos do meu trabalho

Texto produzido para o Prêmio Hans Christian Andersen de Ilustração 2008

A Tempestade - William Shakespeare - Adaptação e ilustração de Rui de Oliveira - Cia das Letrinhas, 2000
Prêmios: IBBY Honour List; Altamente Recomendado - FNLIJ, ambos em 2002.


Gosto de ilustrar livros com conteúdos e propostas literárias bem diferentes uma da outra. Acredito que este seja o aspecto mais fascinante do ato de ilustrar, e sem dúvida o maior desafio para o ilustrador. Em meu trabalho, sempre almejo que a interpretação que tenho do texto não seja a única. Procuro, sempre que possível, criar portas — verdadeiras passagens secretas para que as pessoas tenham as suas próprias e particulares visões.

Preocupa-me, portanto, não condicionar em demasia o leitor. Penso que o ato de criação de imagens se origina não diretamente na palavra, mas no entre- palavras.

Daí vem minha preocupação em criar para cada texto uma imagem adequada, que muitas vezes está de acordo, ou não, com meus gostos pessoais, ou com a minha visão de arte. Por isto, não tenho nenhuma intenção em ser reconhecido de um livro para outro.

Eu substituiria em meu trabalho a palavra estilo por método de abordagem. O texto é a origem de tudo. É impossível ilustrar sem gostar de literatura. É impossível ilustrar sem gostar de ler.

Assim como o trabalho de um ator que interpreta vários papéis — e para tanto é necessário conceituar um laboratório para modelar dramaticamente seu personagem —, vejo o ato de ilustrar como um processo de criação muito semelhante.
Aprofundando mais este conceito, que sedimenta e direciona o modo como vejo a ilustração, eu diria que — adotando conceitualmente no mecanismo da relação texto e imagem a ótica teatral, o método do teórico russo Konstantin Stanislavski, por exemplo, — tal prática não seria conveniente para o ilustrador.

Isto se deve ao princípio de incorporação incondicional e realista, proposto pelo teórico, do ator ao papel. Refletindo agora como ilustrador, esta incorporação, acima citada, sem dúvida poderia ocasionar uma fidelidade ao texto, quase uma imagem espelhar, mas isto seria irreal com relação à arte de ilustrar.

Defendo, portanto, como necessário ao ilustrador um certo distanciamento crítico perante o texto. Vejo o estilo como um mecanicismo unilateral, uma pré-adoção irrestrita do texto. Neste caso, o ilustrador já chega com o seu laboratório pessoal pronto a ser usado, independente de qual seja o gênero ou intenção literária que ele esteja interpretando. Na verdade, ele aprendeu ao longo dos tempos a desenhar o seu próprio desenho. Em outras palavras: ele não apreende o texto para depois aprender o desenho adequado àquele texto.

Fausto - Christopher Marlowe -Adaptação de Luiz Antonio Aguiar - Editora Bertrand - 2005


Venho ilustrando em 30 anos de carreira um universo diversificado de textos, que vão desde Christopher Marlowe (Fausto), Victor Hugo (Pecopin), Michael Ende (Momo) a autores nacionais, como — nomeando apenas alguns — Ana Maria Machado, Rogério Andrade Barbosa, Luciana Savaget, e um dos maiores escritores brasileiros de literatura para crianças, que foi Walmir Ayala. Diante destes autores, como poderia ter um conceito e imagem unificados no ato de ilustrar escritores tão diferentes, tão contraditórios entre si?

Acho este distanciamento fundamental. Eu diria que, ao ilustrar um livro, eu estou na ilustração, mas eu não sou a ilustração. Diante de um texto, o ilustrador não é o antes — a forma advém da literatura, um segredo a ser decifrado por imagens.

Vejo a ilustração como um gênero de literatura, sentenças construídas através de um alfabeto de signos e símbolos. Com este critério, o ilustrador desenvolve e interpreta o que é ilustrável. E o que é ilustrável nem sempre é o literariamente relevante para o escritor. Complementando este comportamento que orienta o meu trabalho, e, retornando à análise do teatro pela natural aproximação com a literatura, procurei ao longo dos anos estudar esta relação, ou seja, o teatro e a ilustração, apesar de meu interesse pelo cinema, devido ao fato de praticar há muitos anos o cinema de animação em paralelo ao meu trabalho de ilustrador.

As convenções e sintaxes do teatro e a relação do ator com o texto levaram a me aproximar mais do teatro do que do cinema, com o intuito de entender o ofício de ilustrar. Logicamente que no cinema de animação a referência básica de meu trabalho é, como não podia deixar de ser, o cinema de seqüência viva.

Um Herói Fanfarrão e sua Mãe bem Valente - Ana Maria Machado - Editora Ática - 1994
Prêmio: Melhor Livro Ilustrado - 1995 - FNLIJ

Passei então a estudar o teatro oriental, principalmente o japonês. Estou me referindo ao teatro Kabuki e ao teatro No, que tanto influenciaram o cineasta russo Sergei Eisenstein e o grande teatrólogo alemão Bertold Bretch. Ao ver e ler a obra destes dois autores, consegui, assim espero, fazer uma ilação com o ato de ilustrar que sempre me preocupava.

Seguindo a trilha de Stanislavski, entendo que o ilustrador não deva ser tomado, possuído por assim dizer, pelo texto, quase como um processo de imersão e catarse. Não assimilo o significado de distanciamento como frieza e alheamento, assim como não vejo a ilustração como tempestade de paixões à maneira do Romantismo, e, muito menos, uma linguagem autista.

Acredito que a elaboração distanciada e crítica do texto tornaria mais real e fiel a literatura, o meu trabalho de ilustrador. Para tanto, seria incoerente o estilo, algo preexistente e previsível. Uma imagem prêt-à-porter. A veracidade não estaria na constância das soluções, e sim na própria contradição das soluções encontradas para cada texto. Sendo cada escritor um estilo diferenciado, o ideal será — e esta tem sido a minha constante procura — nada existir antes em termos de imagem, e muito menos depois.

Em outras palavras, o ideal seria que a solução visual ao criarmos um livro não fosse repetível. Curiosamente, este processo de trabalho — apesar de se relacionar com uma linguagem essencialmente figurativa como é a ilustração — poderia no entanto ser definido como o aqui e agora, que é uma premissa básica da arte abstrata.

Três Contos da Sabedoria Popular - Rogério Andrade Barbosa - Editora Scipione - 2005

Um bom exemplo a ser citado nesta direção, ou seja, da diferença entre abordagem e estilo, é o livro Tapete Mágico, que ilustrei, de nossa grande escritora Ana Maria Machado. Os quatro contos narrados pela autora possuem temas e assuntos diferentes. O que determinou, neste caso, as quatro soluções gráficas encontradas para o livro não foi o estilo de escrever da autora, e sim o assunto e o tema. Mas este comportamento que adotei depende do livro, depende até da palavra física do escritor.

Flor sem Nome - Luciana Savaget - Editora José Olympio - 2004

Por exemplo, em outros livros procurei concentrar a pesquisa formal diretamente no modo e na forma plástica como o escritor escreve. Eu chamaria este processo de lítero-visual. Cito como referência o livro Língua de Trapos, de Adriana Lisboa, que recentemente ilustrei. A maneira delicada, redonda e sinuosa como escreve esta jovem e talentosa poeta inspirou-me a procurar soluções em forma de volutas. Em alguns casos, procuro me afastar do assunto ou do tema do livro, e isto foi o que ocorreu ao ilustrar a citada obra, tanto assim que nas páginas 18 e 19 percebi, ao analisar o texto, que a poeta utilizava 29 vezes a letra O.

Tal fato me orientou, ao criar a ilustração, a um outro tipo de fidelidade plástica ao texto. Usei formas circulares que seriam, em termos gráficos, um sucedâneo do som obtido pela poética dos Os utilizados pela escritora. Estas relações palavra-som e imagem-texto são um exemplo que nos remonta ao livro Songs of Innocence de William Blake, de assumida influência em meu trabalho. Nas ilustrações de Língua de Trapos seria impossível alcançar estas deduções e descobertas, extraídas da relação texto e imagem, já de posse de um estilo prévio.

Língua de Trapos - Adriana Lisboa - Editora Rocco - 2005

Um outro exemplo desta relação em que um estilo previamente solucionado, no meu entendimento, seria impossivel interpretar, é o caso do livro que ilustrei em 1983, chamado Viva Jacaré. Sua autora é Cora Ronai que possui um estilo lírico no início do livro, mordaz e trágico no fim.
Neste trabalho, há dois aspectos que pretendo destacar como abordagem de texto. Primeiro, é o fato de o livro mudar de solução plástica (não quero usar a palavra estilo) à medida em que as palavras se tornam graves no texto. Ainda neste sentido de abordagem, nas páginas 12 e 13, separei as palavras, até mesmo as silabas, e as ilustrei. A intenção era interpretar visualmente a beleza sonora do idioma português no exato momento em que a escritora narra a felicidade do despertar do jacaré, em seu habitat natural.

Viva Jacaré - Cora Rónai - Editora Nova Fronteira - 1983

Acredito, e isto tem sido o fundamento de meu trabalho, que a fidelidade ao texto não está no culto ou no estilo deificado do ilustrador, e sim na impessoalidade sincera e profissional da procura da verdade de cada palavra, de cada frase, de cada sílaba, de cada letra do escritor.
O que pretendo, diante de um texto para ilustrar, não é ser mais que o escritor, é apenas não ser uma extensão dele em forma de imagens.

Por outro lado tenho consciência de que nem tudo que a literatura nos diz possui um corpo físico. Ou seja, nem tudo pode ser ilustrado. Existem momentos em que a abstração do texto chega em tal estado — não estágio — que qualquer imagem seria vulgarizá-lo. Em contrapartida, é comum a expressão textual ficar aquém da transcendência de certas imagens — qualquer palavra seria supérflua para explicá-la. Em um texto, nem tudo se representa e nem todas as imagens se explicam por palavras.

Rui de Oliveira