Algumas considerações sobre o processo
de criação do livro de imagens A Bela e a Fera.
Após algum tempo sem postagens, retorno ao blog com a edição de algumas artes do A Bela e a Fera. Livro de imagens que publiquei pela FTD em 1994. Obtive com este livro o Prêmio Jabuti de ilustração em 1995 e o Prêmio Luis Jardim – FNLIJ – Melhor livro sem texto, também em 1995. Ele tem sido tema de dissertações de mestrado, bem como de estudos acadêmicos sobre imagem e contos de fadas.
Nota: As ilustrações aqui expostas foram capturadas diretamente da arte original.
Era um grande desafio narrar, unicamente por imagens, um conto de fadas tão tradicional. Também, era o meu primeiro livro essencialmente autoral. Durante muitos anos, eu ilustrara diferentes escritores, o que me foi um extenso e necessário aprendizado. Portando, eu não estava me inventando autor. Tampouco, eliminando ou queimando etapas, fato tão comum em nossos dias.
2 - Projeto solo.
Quando cheguei a este projeto, eu já havia ilustrado quase 70 livros, apesar de sempre ter me considerado um autor ao ilustrar os escritores. Infelizmente, esta qualificação é sempre apensada aos escritores. Foge, todavia, ao espaço destas reflexões, a análise de tão importante questão. Na verdade, o que é um autor?
Creio que o motivo que deve levar um ilustrador a pretender e empreender seus próprios projetos é a sua maturidade, e necessidade de auto expressão. Não é competir com os escritores, ou ganhar sozinho os 10% do preço de capa. Os escritores não são competidores ou algozes dos ilustradores. Esta consciência evitaria a proliferação, a massificação de projetos autorais de ilustradores absolutamente prematuros, sem nenhuma consistência técnica e artística.
3- Versão original e referências.
Pesquisei àquela época, 1992 e 1993, todas as versões que pude encontrar, a partir da versão original de Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, baseada em um texto anterior de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, mais conhecida como Madame Villeneuve. Esta versão publicada em 1757 na Le Magazin des Enfants imortalizou este conto. Justamente foi esta versão que tomei como referência para transcrevê-la unicamente por imagens.
Outra leitura deste conto de fadas que muito me impressionou, desde a primeira vez que a vi, foi o filme A Bela e a Fera (La Belle et la Bête) de Jean Cocteau, de 1945. Os figurinos — principalmente a máscara da Fera — desenhados por Christian Bérard, além das luzes e sombras luminosas criadas por Henri Alekan, tudo isso me encantou no filme.
A Bela e a Fera (La Belle et la Bête) - Jean Cocteau - 1945.
As soluções por meio de imagens, plenas de enredo e simbolismo, como, por exemplo, os candelabros e as cariátides vivas usadas pelo diretor. Este conjunto de elementos cênicos que Cocteau utiliza nos remete ao limite tênue entre o real e o fantástico. Justamente, era o que eu pretendia fazer no livro.
Talvez, anos mais tarde, no livro Chapeuzinho Vermelho e outros contos por Imagem — Cia das Letrinhas, 2002 —, eu tenha conseguido realizar melhor esta questão eterna, ou seja, a imagem do real e do imaginário, ao mesmo tempo.
A grande dificuldade que tenho no filme, e nas versões teatrais a que assisti da Bela e a Fera foi o momento final da transformação da Fera em príncipe. Apesar de no filme o ator Jean Marais ter realmente o phisique de rôle de um príncipe, há um certo desencanto nesta passagem.
Afora esta dificuldade que citei, eu não tenho dúvidas de que esta película me influenciou mais na conceituação do livro do que qualquer imagem criada por ilustrador, ou versão escrita da obra.
4- A transformação e o encanto do impossível.
Realmente nesta passagem de Fera para príncipe, sempre percebi uma certa frustração do público, principalmente em uma versão teatral a que assisti em São Paulo. As crianças estavam fascinadas com a Fera, e realmente se decepcionaram quando ela se transforma em príncipe. A Fera é uma transgressão. A relação entre os dois personagens é mais insólita e misteriosa enquanto Fera e Bela. No filme O Crepúsculo dirigido por Catherine Hardwike (2008), caso o personagem Edward Cullen se transformasse em humano e mortal, sem dúvida, seu amor por Bella Swan perderia o fascínio. O nome da personagem não é uma coincidência com o conto de fadas. Este mesmo dualismo acontece no recente filme A Fera (Beastly) de Daniel Barnz (2011).
Pensando neste impasse, achei inicialmente que não deveria concluir o ciclo. O livro terminaria com a Bela abraçando a Fera. Considerando o fato de que no livro, na leitura visual que fiz do conto, a Fera vai se humanizando aos poucos no correr dos acontecimentos e das páginas.
Quando a Bela o encontra no lago (pág.23), ele, a Fera, já está praticamente humanizado — no rosto, nas pernas e nas mãos. Ele, inclusive, segura o camafeu com um retrato da Bela. A Fera não foi amaldiçoada por ninguém. Ela é um ser em processo de evolução, um árduo trajeto de aprimoramento humano. O que transforma lentamente a Fera, ao longo do livro, é o seu amor pela Bela. A sua metamorfose não se deve a uma frase da Bela, “eu te amo”, e sim a um longo caminho. O importante não é o curso, é o percurso.
5- Variantes deste tema: Eu te amo.
Uma outra versão desta frase de três palavras eu utilizei no livro Uma História de Amor sem Palavras — Editora Nova Fronteira, 2009. É também um livro de imagens, e suas artes foram publicadas aqui no blog, em julho de 2010.
Estes meus dois trabalhos são complementares um do outro. Como o vermelho e o verde. O Sol e a Lua. Apesar de 14 anos separarem um do outro. Mesmo assim fico feliz, pois estes dois importantes livros em minha carreira foram comprados pelo PNBE. Portanto, muitas crianças e adultos tiveram e têm acesso a eles.
6- Sobre as influências no livro A Bela e a Fera.
Nas muitas edições ilustradas que pude coletar, eu percebi que não havia nenhuma versão unicamente por imagens do conto. O que aumentava mais a minha vontade de realizar o projeto.
A ideia original era constituída de três histórias em livros separados. A Bela e a Fera, que abriria a série; a seguir viria o Chapeuzinho Vermelho e, encerrando a coleção, um conto que também sempre me fascinou, O Barba Azul.
Curiosamente, da mesma forma que A Bela e a Fera, a referência básica para criação da atmosfera sombria das imagens deste livro não surgiu de versões anteriormente ilustradas.
Lembro que, ainda estudante em Budapeste, ouvi na rádio húngara, pela primeira vez, a ópera em um ato de Béla Bártók (1881-1945) o Castelo do Príncipe Barba Azul (A kékskakallú herceg vara). Esta ópera me impressionou profundamente. Nesta mesma época, por coincidência ou não, eu vi um espetáculo de bonecos para adultos com a peça de Bartok chamada o Mandarim Maravilhoso (Csadálatos Mandarin). Fiquei encantado pela música deste compositor, que até então eu conhecia muito pouco. Creio que o drama imanente destas duas histórias, aliado à leitura trágica de Bartók, sedimentou a ideia de fazer algo com o conto de Charles Perrault. Um sonho que só foi possível muitos anos mais tarde.
Acho que — nesta versão do Barba Azul que desenhei para a Cia das Letrinhas — as ilustrações da página dupla 54-55, e da página 65, que encerra a história, sejam as que mais representam a atmosfera sombria da música, a exposição das fraquezas humanas, onde tudo é enlaçado pelo desejo de ouro, sangue e poder. Todos estes elementos compõem o sinistro painel humano da ópera, que tem como libretista o dramaturgo e crítico húngaro Béla Balázs (1884-1949).
Prêmio Jabuti de ilustração - 2003 - Prêmio Luis Jardim - FNLIJ - Melhor livro sem texto - 2003.
Prêmio Jabuti de ilustração - 2003 - Prêmio Luis Jardim - FNLIJ - Melhor livro sem texto - 2003.
7- O abstrato e o figurativo e o livro de imagens.
Concluindo:
Vejo como muito importante no processo de criação do ilustrador esta aproximação entre música e imagem narrativa. Contar histórias visuais é criar antagonismos e conciliar polaridades.
Acredito que estas influências abstratas da música sejam mais perenes e vigorosas sobre nosso trabalho de ilustrador, do que qualquer identificação ou preferência do artista por algum tipo de imagem. Seria, no sentido inverso, a leitura musical que o compositor russo Sergei Rachmaninoff (1873-1943), um romântico tardio, fez do quadro do pintor suíço Arnold Böeklin. Estou me referindo à impressionante peça A Ilha dos Mortos que o compositor fez (1909) a partir de uma das 5 versões do tema, criadas pelo pintor. Neste caso, a concreção antecedeu e originou uma abstração, sempre lembrando que não existe na obra uma sequência narrativa. Ela não é um poema sinfônico.
As leituras da música são muito pessoais, até pelo fato de o pintor jamais ter definido claramente o que havia pintado. Deste modo, ficamos apenas com as emanações da peça de Rachmaninoff, a chamada atmosfera, tão importante na arte de ilustrar. Além de ser um elemento básico no livro narrado e descrito apenas por imagens, como é o caso do A Bela e Fera.
Rui de Oliveira – dezembro de 2011
Fim da Postagem da Bela e a Fera - Editora FTD - 1994.
Palavras Chaves:
A Bela e a Fera - Ilustração de livro para crianças - Contos de Fadas - Livro de Imagem - A Bela e a Fera- filme francês de Jean Cocteau - Crepúsculo, o filme - Chapeuzinho Vermelho - O Barba Azul - Charles Perrault - O Castelo do príncipe Barba Azul - Béla Bártók - A Ilha dos Mortos - Arnold Böeklin - Sergei Rachmaninoff.
Key Words:
The Beauty and the Beast -Children Book illustration - Fairy Tales - Book without Text - The Beauty and Beast, french film - Jean Cocteau - Twilight, the film - Little red riding wood - The Bluebeard - Charles Perrault - Prince Bluebeard´s Castle - Béla Bártók - Isle of the dead - Arnold Böeklin - Sergei Rachmaninoff.
FIM.
Parabéns!!! está fabuloso!
ResponderExcluirSinceramente, estão entre as ilustrações mais lindas que já vi! Parabéns pelo trabalho impecável! Toda criança deveria ter a oportunidade de abrir um livro tão encantador! Muito bonito!
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