Nessa época, convivi com letristas anônimos de grande habilidade para “abrir letras”. Eles não diziam desenhar letras. Eu ficava impressionado como eles faziam uma arte da tipografia com o pincel, tendo como base o contorno das letras.
Eram verdadeiros e hábeis calígrafos. Eu procurava imitá-los. Desenhando também com o pincel direto, mantendo a “mão firme”, como eles falavam e me orientavam.
Historiando um pouco o desenho de letras no meu trabalho, eu fui estudar depois no SENAI, na Escola de Artes Gráficas. Tive contato com os processos de impressão e de composição manual.
É por meio da composição manual que um jovem começa a entender o ritmo, o espacejamento entre as letras, as entrelinhas, além do emprego de vinhetas e pequenos arabescos. E me pergunto: qual a escola de design hoje em dia teria uma tipografia manual para aprendizado do aluno?
Na verdade, o que nós desenhamos é o som das letras, das sílabas, como se fossem acordes e notas musicais. Desenhar um lettering é criar uma pauta, usando o som das cordas, sopro e percussão. O lettering é uma música que cada um canta a seu modo.
Continuando nesta linha de trabalho e aprendizado daquela época, mais tarde passei a montar foto-letras, que era um gênero de composição manual, só que com letras impressas em papel, não mais os tipos de caixa.
Esta gradual educação do olhar nos faz compreender que o espacejamento constrói a harmonia e a dinâmica do lettering. Entretanto, tudo isso foi abandonado e nada foi posto no lugar. E como se sabe: é impossível queimar etapas, como se fosse jogos de dados.
A arte de desenhar ou esboçar letras não é virtual — ela é tátil, física, corpórea. Acho, portanto, impossível eliminar o esboço no papel.
Felizmente, o uso vulgar e indiscriminado da infografia está chegando à exaustão. Hoje, por exemplo, são muitos os jovens dedicados ao estudo da caligrafia — uma arte essencial na criação tipográfica e um elo seguro para o despertar da individualidade de cada um.
Fico feliz com esta revivescência positiva da arte da letra — uma redescoberta da infinitude da mão. Este resgate do artesanal não é um simples revival, ou modismo. É uma necessidade humana de auto-expressão. As jornadas de desenho livre que se espalham pelo país comprovam esta necessidade.
Desenhar é uma atitude de autoconhecimento. É escrever cartas a nós mesmos.
Os jovens designers e ilustradores estão sentindo e percebem que o banimento do artesanal prejudicou a sua livre criatividade. Não existe arte sem ofício.
E, para finalizar, aproveitando este fórum — esta ágora que é um blog (assim o vejo) —, eu diria que ser de vanguarda em nossos tempos atuais — cinzentos socialmente e ideologicamente indefinidos — é preservar o passado.
Não como relíquia ou camafeu para se colocar numa caixa de jóias. Preservar o passado é revê-lo criticamente sempre, mas é ter desvelo, conhecimento e apreço por ele também. Fim
Editora Adler-Books - 2009.
companheiro de imagens e conversas ilustradas até os dias de hoje.
Fim
A ilustração como forma de arte
O que se espera de um livro para crianças é que as imagens contenham
arte, ou seja, que tenham sido feitas por um verdadeiro artista.
Não posso esquecer a importância imanente das imagens de um
mestre pouco lembrado de nossa ilustração — Seth, pseudônimo
de Álvaro Marins. Suas ilustrações povoaram minha infância passada
no subúrbio do Rio de Janeiro, tornando-se uma eterna, grata e
preciosa memória.
As belas aquarelas de Franz Richter para O patinho feio, de Hans
Christian Andersen, que tanto me encantavam quando eu era criança,
constituíam uma autêntica expressão de arte. Eram belas como
ilustração porque não pretendiam se incorporar ou se mimetizar no
universo das aquarelas de John Singer Sargent, por exemplo.
A ilustração é arte quando não pretende — como Prometeu — roubar
o fogo sagrado da chamada grande arte. Aquelas imagens me despertavam
a imaginação pelo fato de serem profundamente evocativas.
Não eram realistas, mas eram críveis. Para que haja o enlevo, tem que
existir o reconhecimento da imagem, o que não significa saber nomeá-
las, ou seja, dar-lhes um nome. Logo depois do reconhecimento
vem a rememoração. Esse é um binômio fundamental para se contar
histórias por imagens.
Nem sempre a compreensão da imagem narrativa é integral para o pequeno
leitor. O poder simbólico de uma ilustração em um livro para
crianças e sua capacidade de se perpetuar na memória estão muito
além de uma simples nomeação, assim como, na poesia e na prosa,
as palavras estão muito além de seus significados.
Pensando na sonoridade que as palavras provocam, o mesmo ocorre com a ilustração,
que, apesar de seu aspecto figurativo concreto, também possui um
som, um gênero de ressonância visual.
Poderíamos dizer que, em termos de imagens, não escutamos o som,
mas sim auscultamos sua sonoridade. Essa ambigüidade, por um lado
figurativa — ver a imagem —, por outro, abstrata — auscultar o som —, traz um entendimento
mais amplo da arte de ilustrar.
Um belo e clássico exemplo entre a relação da imagem com os sons específicos
que sugere é uma ilustração de um dos mestres desta arte.
Refiro-me a Charles Robinson ao ilustrar A Polegarzinha, em 1911.
Os peixes, com suas vozes próprias, parecem dialogar com a personagem
indefesa e repleta de dúvidas que é a Polegarzinha.
Na arte dos grandes mestres, como é o caso de Robinson, estamos diante
da magia daquilo que não é, mas passa a ser. Uma espécie de animismo
visual, que é a essência da arte de ilustrar.
Aquilo que o artista vê — em outras palavras, o seu mundo tangível — será sempre o básico e o fundamental para sua
criação. Porém, a partir desse momento,
ele não pode ignorar a natural aparição daquilo que ele não está vendo.
Podemos, então, concluir que o trajeto criativo se origina no ver,
para, logo a seguir, chegar ao não-visto.
A gênese da criação no ver se justifica pelo fato de que a realidade é sempre
muito mais imaginosa que a imaginação.
Os peixes que conversam com a Polegarzinha são fantásticos não porque foram desenhados à maneira prodigiosa;
eles são mágicos pela simples propriedade de poder falar.
Estamos aqui também diante de uma outra questão inerente à arte de
ilustrar, principalmente na obra dos grandes mestres, do presente e
do passado. A imagem de que necessitamos não está apenas circunscrita
ao universo dos fatos. Existe a necessidade humana do símbolo
e da imagem atemporal. Precisamos da figuração de algo em que acreditamos,
mesmo sabendo que ele jamais tenha existido.
Esse é o proscênio onde geralmente atuam os atores — personagens dos livros infantis e juvenis.
Precisamos tocar algo e sentir a aspereza ou maciez,
frieza ou tepidez, em alguma coisa que não tem corpo, ou mesmo ver
o invisível, cuja representação parece que foi feita somente para nós.
Enfim, os fatos sem os símbolos não preenchem os espaços do olhar,até porque nem toda imagem precisa de uma explicação. Portanto, está
neste interregno — entre o ver e o posteriormente mirar — a eternidade
dessa imagem criada por Charles Robinson.
Outra reflexão que essa eterna imagem nos sugere é que a ilustração deveser profundamente verbal; porém, sem jamais recorrer à verbalização
para explicar seus objetivos.
A ilustração fala, mas não tem voz.
(Continua na próxima postagem - parte 5)
Este texto é um fragmento do livro
Pelos Jardins Boboli - Reflexões sobre a Arte de Ilustrar Livros para Crianças e Jovens - Rui de Oliveira
Editora Nova Fronteira - 2008
Prêmio Cecília Meireles - FNLIJ - Melhor Livro Teórico - 2009
RUI,
ResponderExcluirAdorei sua "jovial" foto na Hungria.
Um abraço GRANDE,
Rogério
Rui, quero agradecer por essa verdadeira aula de design tipográfico no seu blog, e ainda pelo prazer de poder apreciar suas caligrafias, seus letterings, cercaduras, vinhetas e iluminuras. Grande abraço do amigo William Côgo!
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