O encanto do objeto comum e os “doces de coco”
Muitas imagens habitaram minha infância, e algumas permaneceram
hóspedes eternamente. Por que certas imagens dos livros ilustrados
que eu lia me encantavam mais do que outras? Todas as imagens podem
ser lidas, todavia algumas nos induzem mais à narrativa e ao devaneio
do que outras.
Capa do livro
Que processo é este de encanto e memorização que a imagem possibilita?
Diante da particularidade do olhar, é impossível
estabelecer um motivo ou muitos motivos que nos levam a
cristalizar para sempre uma imagem, uma ilustração de um livro.
No entanto, o primeiro elo que desperta nosso olhar e transfere a ilustração
para nossa memória é um sentimento vago, impreciso, que
podemos chamar de encantamento, uma qualidade que tem a imagem
de nos apaziguar, mesmo que nos inquiete.
Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009
Ilustrações que estão além de suas explicações verbais, muito além das questões de
semiologia, das questões estruturais e narrativas. O cativo desse
olhar é muito diferente do chamado distanciamento estético, ou de
um olhar desinteressado, tão caros à análise crítica de nossos dias.
A ilustração possui um fim a ser servido.
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Ao se abster do prático, ou seja, do ato de envolver e de contar e descrever histórias,
não estaremos mais no universo da ilustração. O fato de se situar em um termo
bastante flexível — como o encantamento — o primeiro nível
de apreciação da arte de ilustrar não predispõe o olhar como devedor
unicamente do prazer, refugiando nossa atenção exclusivamente
nos meandros da forma.
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Procurando uma metáfora para explicar a relação entre o ilustrador, o escritor
e o leitor, diria que a ilustração é o cisne, o texto é Júpiter e o leitor
pode ser interpretado como Leda. Todas essas imagens passaram pelo
universo visual vivido e reconhecido.
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Como dizia Anatole France, o homem inventou a ninfa, mas antes havia a água.
É fácil e cômodo desenhar aquilo que nunca se viu. Infelizmente grande parte das ilustrações
para livros infantis trabalha sobretudo com o universo do grotesco.
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Toda esta introdução tem o objetivo de nos situar diante das convenções
que caracterizam grande parte das ilustrações, principalmente para os pequenos leitores.
Os bonequinhos que podemos classificar como doces de coco podem
ser ilustrações apetitosas e açucaradas bastante aceitas como infantis,
fato que não esconde sua outra face, nauseante e repetitiva.
Longe dessas imagens laxantes, poderíamos definir a ilustração como
uma representação da ausência do objeto, sem saudades ou nostalgias,
muito menos atrelada à sua reprodução fiel.
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Faz parte do universo das ilustrações para livros infantis e juvenis sua íntima relação com a ilusão
do objeto ou do corpo humano. Isso não significa uma trapaça.
Apesar de massificado em livros, catálogos e premiações, esse gênero
de ilustração tão comum é uma representação duvidosa dos objetos e dos seres.
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As ilustrações aqui denominadas doces de coco apresentam,
com suas imagens geralmente em traços ingênuos e cores chapadas,
um naifismo aculturado e contrabandeado dos cartuns, RPGs, gibis e
séries de TV. São ilustrações que parecem padrões têxteis para quartos
e enxovais de crianças, ou mesmo papel de embrulho para presentes.
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O legítimo direito que tem o ilustrador de desenvolver seu trabalho
em qualquer estilo que bem lhe aprouver se torna questionável quando
essa opção soberana oculta em realidade seu pouco adestramento à arte de desenhar.
Um artifício ante a falta de ofício.
Do ponto de vista formal e mesmo conceitual, essas ilustrações se aproximam
e se identificam com o universo do design. São verdadeiros pictogramas,
portanto, muito mais apropriadas para projetos de sinalização
de empresas, papéis de parede ou imagens para licenciamento.
Retornando às imagens de livros que me encantaram na infância, posso
aceitar apenas parcialmente que aquelas ilustrações me condicionaram
uma visão unilateral da cena representada. Ou seja, à visão única do ilust rador.
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No entanto, a realidade sensível e tátil da ilustração,
a sucessão narrativa de planos, os drapeamentos descritivos do cenário
e dos personagens, todos esses recursos espaciais induziram-me a
caminhar pela imagem. Nessa caminhada, a criança desenha mentalmente,
à sua maneira, aquilo que também foi desenhado à maneira do ilustrador.
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A memorização da imagem não está confinada no livro, tampouco no olhar da criança.
A ilustração se projeta e se constrói no meio do caminho.
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Seu nascedouro é em algum lugar do passado, na experiência vivida de forma real
ou imaginária pela criança. Portanto, o condicionamento à visão do ilustrador é muito relativo.
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A imagem que rememoramos para toda a vida está em uma região, em um indefinido lugar entre o que estamos vendo, o que vimos e o que supomos que estamos vendo.
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Não existe um olhar puro, inocente e desinteressado. Vemos aquilo que temos a expectativa de ver.
Tal fato exclui qualquer processo coibitivo e limitado de se fruir a ilustração.
Sua criação é feita pelo ilustrador, mas sua concretização é do pequeno leitor.
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Diante da importância da imagem nos livros destinados aos públicos
infantil e juvenil, incluindo novas relações do audiovisual com
a palavra não apenas por questões plásticas, mas até por seus aspectos
ideológicos e alienantes, a intenção destes estudos é propor um
modo conceitual de leitura da ilustração que auxilie, sobretudo, os
educadores, bibliotecários, animadores culturais e até mesmo os editores,
que, em sua maioria, formados em faculdades de letras, apresentam dificuldades no trato com a ilustração.
(Continua na próxima postagem - Parte 4)
Este texto é um fragmento do livro Pelos Jardins Boboli - Reflexões sobre a Arte de Ilustrar Livros para Crianças e Jovens. Rui de Oliveira - Editora Nova Fronteira - 2008
Prezado Rui, que idéia deliciosa fazer este blog e assim "sentir" o calor dos leitores que têm em você o grande nome da ilustração brasileira. Você é minha referência de excelência. Bom, depois de confessar que adorei te ver em formato blog (além de ler seus ensinamentos no livro Pelos Jardins Boboli, que está cheio de anotações minhas e marcações, e além de adorar seu site)deixo aqui o primeiro bilhete desta sua fã: "Rui, sou Paulistana e amo minha cidade mas adoraria morar no Rio de Janeiro só para ter aulas com você, me sinto órfã nessa estrada das artes". Um abraço respeitoso, LeKa.
ResponderExcluirRui, estão lindas as ill. Uma sugestão: você pode ter um twitter e avisar quando atualizar o blog.
ResponderExcluirUm abraço do ex-aluno de EBA- UFRJ !