terça-feira, 20 de julho de 2010

Refletindo sobre as águas das imagens - Pelos Jardins Boboli (parte 3)

O encanto do objeto comum e os “doces de coco”


Muitas imagens habitaram minha infância, e algumas permaneceram

hóspedes eternamente. Por que certas imagens dos livros ilustrados

que eu lia me encantavam mais do que outras? Todas as imagens podem

ser lidas, todavia algumas nos induzem mais à narrativa e ao devaneio

do que outras.

Capa do livro


Que processo é este de encanto e memorização que a imagem possibilita?

Diante da particularidade do olhar, é impossível

estabelecer um motivo ou muitos motivos que nos levam a

cristalizar para sempre uma imagem, uma ilustração de um livro.

No entanto, o primeiro elo que desperta nosso olhar e transfere a ilustração

para nossa memória é um sentimento vago, impreciso, que

podemos chamar de encantamento, uma qualidade que tem a imagem

de nos apaziguar, mesmo que nos inquiete.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Ilustrações que estão além de suas explicações verbais, muito além das questões de

semiologia, das questões estruturais e narrativas. O cativo desse

olhar é muito diferente do chamado distanciamento estético, ou de

um olhar desinteressado, tão caros à análise crítica de nossos dias.

A ilustração possui um fim a ser servido.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Ao se abster do prático, ou seja, do ato de envolver e de contar e descrever histórias,

não estaremos mais no universo da ilustração. O fato de se situar em um termo

bastante flexível — como o encantamento — o primeiro nível

de apreciação da arte de ilustrar não predispõe o olhar como devedor

unicamente do prazer, refugiando nossa atenção exclusivamente

nos meandros da forma.

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Procurando uma metáfora para explicar a relação entre o ilustrador, o escritor

e o leitor, diria que a ilustração é o cisne, o texto é Júpiter e o leitor

pode ser interpretado como Leda. Todas essas imagens passaram pelo

universo visual vivido e reconhecido.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Como dizia Anatole France, o homem inventou a ninfa, mas antes havia a água.

É fácil e cômodo desenhar aquilo que nunca se viu. Infelizmente grande parte das ilustrações

para livros infantis trabalha sobretudo com o universo do grotesco.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Toda esta introdução tem o objetivo de nos situar diante das convenções

que caracterizam grande parte das ilustrações, principalmente para os pequenos leitores.

Os bonequinhos que podemos classificar como doces de coco podem

ser ilustrações apetitosas e açucaradas bastante aceitas como infantis,

fato que não esconde sua outra face, nauseante e repetitiva.

Longe dessas imagens laxantes, poderíamos definir a ilustração como

uma representação da ausência do objeto, sem saudades ou nostalgias,

muito menos atrelada à sua reprodução fiel.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Faz parte do universo das ilustrações para livros infantis e juvenis sua íntima relação com a ilusão

do objeto ou do corpo humano. Isso não significa uma trapaça.

Apesar de massificado em livros, catálogos e premiações, esse gênero

de ilustração tão comum é uma representação duvidosa dos objetos e dos seres.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


As ilustrações aqui denominadas doces de coco apresentam,

com suas imagens geralmente em traços ingênuos e cores chapadas,

um naifismo aculturado e contrabandeado dos cartuns, RPGs, gibis e

séries de TV. São ilustrações que parecem padrões têxteis para quartos

e enxovais de crianças, ou mesmo papel de embrulho para presentes.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


O legítimo direito que tem o ilustrador de desenvolver seu trabalho

em qualquer estilo que bem lhe aprouver se torna questionável quando

essa opção soberana oculta em realidade seu pouco adestramento à arte de desenhar.

Um artifício ante a falta de ofício.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Do ponto de vista formal e mesmo conceitual, essas ilustrações se aproximam

e se identificam com o universo do design. São verdadeiros pictogramas,

portanto, muito mais apropriadas para projetos de sinalização

de empresas, papéis de parede ou imagens para licenciamento.

Retornando às imagens de livros que me encantaram na infância, posso

aceitar apenas parcialmente que aquelas ilustrações me condicionaram

uma visão unilateral da cena representada. Ou seja, à visão única do ilust rador.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


No entanto, a realidade sensível e tátil da ilustração,

a sucessão narrativa de planos, os drapeamentos descritivos do cenário

e dos personagens, todos esses recursos espaciais induziram-me a

caminhar pela imagem. Nessa caminhada, a criança desenha mentalmente,

à sua maneira, aquilo que também foi desenhado à maneira do ilustrador.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


A memorização da imagem não está confinada no livro, tampouco no olhar da criança.

A ilustração se projeta e se constrói no meio do caminho.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Seu nascedouro é em algum lugar do passado, na experiência vivida de forma real

ou imaginária pela criança. Portanto, o condicionamento à visão do ilustrador é muito relativo.


Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


A imagem que rememoramos para toda a vida está em uma região, em um indefinido lugar entre o que estamos vendo, o que vimos e o que supomos que estamos vendo.

Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2

009


Não existe um olhar puro, inocente e desinteressado. Vemos aquilo que temos a expectativa de ver.

Tal fato exclui qualquer processo coibitivo e limitado de se fruir a ilustração.

Sua criação é feita pelo ilustrador, mas sua concretização é do pequeno leitor.

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Uma História de Amor sem Palavras - livro de imagem - Ed. Nova Fronteira - 2009


Diante da importância da imagem nos livros destinados aos públicos

infantil e juvenil, incluindo novas relações do audiovisual com

a palavra não apenas por questões plásticas, mas até por seus aspectos

ideológicos e alienantes, a intenção destes estudos é propor um

modo conceitual de leitura da ilustração que auxilie, sobretudo, os

educadores, bibliotecários, animadores culturais e até mesmo os editores,

que, em sua maioria, formados em faculdades de letras, apresentam dificuldades no trato com a ilustração.

(Continua na próxima postagem - Parte 4)


Este texto é um fragmento do livro Pelos Jardins Boboli - Reflexões sobre a Arte de Ilustrar Livros para Crianças e Jovens. Rui de Oliveira - Editora Nova Fronteira - 2008

Prêmio Cecília Meireles - FNLIJ - O Melhor Livro Teórico - 2009

2 comentários:

  1. Prezado Rui, que idéia deliciosa fazer este blog e assim "sentir" o calor dos leitores que têm em você o grande nome da ilustração brasileira. Você é minha referência de excelência. Bom, depois de confessar que adorei te ver em formato blog (além de ler seus ensinamentos no livro Pelos Jardins Boboli, que está cheio de anotações minhas e marcações, e além de adorar seu site)deixo aqui o primeiro bilhete desta sua fã: "Rui, sou Paulistana e amo minha cidade mas adoraria morar no Rio de Janeiro só para ter aulas com você, me sinto órfã nessa estrada das artes". Um abraço respeitoso, LeKa.

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  2. Rui, estão lindas as ill. Uma sugestão: você pode ter um twitter e avisar quando atualizar o blog.
    Um abraço do ex-aluno de EBA- UFRJ !

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